Much ado about nothing

No livro O Cinema do Real, que reúne alguns dos melhores debates de dez edições do Festival É Tudo Verdade, há uma discussão sobre a representação dos conflitos no cinema documentário, em que João Moreira Salles diz que um de seus filmes ganhou notoriedade e teve repercussão pelos motivos errados. Ele se referia a Notícias de Um Guerra Particular, que se presta a fazer um retrato do estado de caos causado pela violência urbana relacionada ao tráfico de drogas que tomou conta do Rio de Janeiro.
É que a co-diretora Kátia Lund foi acusada de associação com o tráfico de drogas, e Marcinho VP, “dono” da Santa Marta, já era pop star havia tempo. A polícia desconfiou da “intimidade” com a Santa Marta do material captado durante a realização de Notícias..., e avaliou que a equipe teria negociado com os traficantes as autorizações para gravações de imagens e depoimentos, que incluem a voz de um chefe do tráfico que concede entrevista sem mostrar o rosto, e jovens e crianças andando com metralhadoras à luz do dia pelas vielas da favela.
E fica claro que rolou um tipo qualquer de acordo com os donos do morro para a realização deste filme. A polícia não estava de todo errada, até porque na mesma época o jornalista Caco Barcellos lançou o livro “Abusado”, que conta a história de Marcinho VP – o mesmo que teria “ajudado” Kátia Lund e que, dizem, é o traficante entrevistado em Notícias... com o rosto coberto. Foi ele também que passou um tempo em Buenos Aires sustentado por João Moreira Salles, que bancou o sumiço de Marcinho VP com a promessa do traficante de que largaria o mundo do crime – colaboração que rendeu ao cineasta uma pena de 30 dias de prestação de serviços à comunidade. Durante o período em que esteve na Argentina, Marcinho VP manteve encontros com Caco Barcellos, que à época colhia as informações e entrevistas que compuseram posteriormente o livro. Não por acaso, também, embora Caco Barcellos tente no epílogo do livro dissuadir o leitor da idéia, Marcinho VP foi encontrado morto por estrangulamento pouco depois do lançamento do livro, dentro de uma lata de lixo no presídio de Bangu 3 – dizem, mais uma vez, que os traficantes do Rio não ficaram nada satisfeitos com as revelações detalhadas sobre o funcionamento das “firmas” presentes em “Abusado” e por isso teriam matado o “colega”. Logo depois da morte de Marcinho VP, Caco Barcellos foi para Londres.
Mas voltando ao filme, para não perder o fio da meada de vez, Notícias... só não é uma fraude maior por ter algum valor como documento. É um filme que talvez valha a pena assistir daqui a 30 anos, para mostrar aos filhos e se ter uma idéia de como as coisas funcionavam no que se refere a esse que é o tema mais recorrente relativo ao Rio de Janeiro nos últimos anos: o tráfico. Notícias... nos põe diante de uma situação com a qual nos deparamos, mesmo que de maneira menos chocante, ao assistirmos reportagens de televisão que falam sobre o tráfico e o poder paralelo dos traficantes, a de impotência da sociedade civil e, pior, da autoridades, polícia, poder público e quem mais tivesse obrigação de resolver a questão diante de uma situação que parece irreversível.
Só que como filme, obra cinematográfica, é muito ruim. Apelativo, Notícias de Um Guerra Particular é todo trilhado com uma música dramática que constrói a atmosfera de terror que permeia todo o filme. É chato, a montagem cheia de cartelas não é nada interessante. O filme se valeu de hype em torno dos problemas judiciais enfrentados pelo personagem principal e pelos diretores, e da própria exposição de uma situação com a qual grande parte das pessoas só tem coragem de tomar contato dessa forma mediada, assunto sobre o qual Ismail Xavier fala com maestria no prefácio à edição brasileira de Hitchcock Truffaut, embora se referindo à “apreciação” dos crimes clássicos do cinema Hitchckiano.
Com depoimentos colhidos entre 1997 e 1998, somente agora Notícias... chegou às locadoras e foi lançado num DVD duplo que traz nos extras as entrevistas na íntegra com o General Nilton Cerqueira, Capitão Pimentel, Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus), Adão, Soldado Milton, Adriano, Gordo e Hélio Luz.
Leo disse que o meu video sobre Penitenciária Lemos Brito é melhor. (O_O) Será que vale?
* Vale muito a pena ler Abusado. Além da linguagem atraente e objetiva, fruto provavelmente dos anos e anos de jornalismo de Caco Barcellos, a narrativa se torna ainda mais atraente por não ser nada óbvia nem linear, embora conte uma história. O livro acumula méritos tanto pelo lado investigativo quanto enquanto obra “literária” – com o risco de eu estar cometendo uma infâmia contra a literatura purista.

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