Para quem tiver raça
Esse tratado é uma análise (breve) da trilha de sonora de Kill Bill 1, feita para a pós graduação. Adaptei um pouco a linguagem e tirei as citações para não ficar tão acadêmico.

Pertencente a uma leva de realizadores “compõe” – com o perdão do trocadilho - as trilhas sonoras dos seus filme com coletâneas de canções, Quentin Tarantino transformou a escolha prodigiosa que faz dessas músicas em uma das suas principais marcas, tanto pelo uso bem humorado e inusitado que faz delas quanto pela contribuição que acaba trazendo a artistas que viviam no ostracismo até serem “redescobertos” pelo diretor. Esse uso da música não é exclusivo de Tarantino. É só prestar atenção nas músicas tão ou mais obscuras para o grande público presentes nos filmes de Almodóvar.
Algumas músicas presentes em cenas memoráveis dos filmes de Tarantino permanecem na memória de uma fatia do público que compartilha do gosto pela cultura pop e pelo deleite estético proposto pelo diretor, que é estendido às trilhas dos seus filmes. Certamente um número muito maior de pessoas lembra de My Heart Will Go On, de Celine Dion, embalando o romance das personagens de Leonardo di Caprio e Kate Winslet em Titanic, do que Girl, You’ll Be a Woman Soon trilhando a cena da overdose da personagem Mia Wallace, de Uma Thurman, em Pulp Fiction. Mas provavelmente essa música seria pouco ou nada ouvida em outro contexto, seja na versão original de Neil Diamond, ou no cover do Urge Overkill que está na trilha de Pulp Fiction.
Sobre a trilha de Kill Bill 1, composta por 32 músicas das quais apenas 17 constam do disco vendido no Brasil, vemos que o Tarantino continua apelando para uma trilha sonora meticulosamente escolhida, ao que parece, para possuir sentido por si só em algumas cenas, promovendo inclusive um distanciamento do espectador em relação ao filme por alguns instantes, e a conseqüente aproximação com o seu próprio universo estético – é a transição do mundo ficcional para o mundo particular observada por Umberto Eco.
Tal recurso, do qual diretores como Tarantino fazem uso propositadamente, são inclusive “desaconselhados”, por assim dizer, por autores que estudam as funções da música no cinema clássico, e que propõem a inaudibilidade como pré requisito para um bom funcionamento da relação entre imagem e música no cinema clássico citado. Mas como o cinema de Tarantino só remete aos clássicos em algumas citações (acentuadas em Kill Bill 1), da piada em que ele parece querer transformar Kill Bill (incluso ai o segundo filme também) a música é parte decisiva. Em seus 110 minutos de duração em que estão inseridas as 32 canções citadas, não é utilizada nenhuma música que sugira grande tensão ou grandes progressões, nem mesmo nas cenas de brigas, ou em qualquer outra que sugira algum suspense, como a gang de O’Ren Ishi (personagem de Lucy Liu) entrando no salão onde acontece a seqüência mais longa do filme, com cenas de luta e uma violência despudorada e rasgada.

A seqüência em que a protagonista do filme vivida por Uma Thurman (A noiva) já está no referido salão prestes a enfrentar a batalha mais difícil desde que saiu do estado de coma e se imbuiu da obrigação de matar os inimigos que quase a mataram quatro anos antes é trilhada pelas músicas diegetizadas do grupo japonês 5, 6, 7, 8’s (existe “de verdade”), que toca um rock despretencioso com um pé na surf music e no rockabilly em uma festa que acontece no local.

Nada menos que 20 músicas e uma série de efeitos sonoros trilham a seqüência, cujo clímax é a luta entre A noiva e O’Ren Ishi que acontece numa área externa da casa das folhas azuis sob a neve e tem como “pano de fundo sonoro” Don’t Let Me Be Misunderstood, cuja versão do Santa Esmeralda que está na trilha de Kill Bill 1 é um hit disco/glitter/gay da década de 70. Uma das músicas mais clichê de que se tem notícia trilha uma cena das menos óbvias, onde duas mulheres dotadas de força física incomum manipulam espadas com maestria. Só para constar, a versão original da música foi hit também, só que na década de 60 e pelas mãos do The Animals.

Outro exemplo, neste caso de humor negro, é a cena inicial do filme, de extrema violência, que mostra um massacre numa pequena capela em Pasadena, em que A noiva, grávida, é espancada e leva um tiro na cabeça desferido pelo ex marido, Bill. Essa cena é trilhada pela música “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)”, cantada por Nancy Sinatra.

A música em diversas passagens de Kill Bill 1 é utilizada para “descrever” de certa forma o que está sendo visto, fazer uma referência literal, mesmo com esse tom de humor negro que se tem ao se trilhar uma cena de uma mulher que toma um tiro dado pelo próprio marido com a música de Nancy Sinatra cujo refrão diz: “Bang bang, he shot me down/Bang bang, I hit the ground/Bang bang, that awful sound/Bang bang, my baby shot me down[1].” É um típico caso em que são as letras, e não a música em si, que remete objetivamente à narrativa.
A trilha sonora de Kill Bill 1, bem como de outros filmes de Tarantino, não parece se propor a nenhum dos propósitos verificados na utilização “tradicional” da música pelo cinema. O que há de genial neste uso inusitado parece residir justamente em como Tarantino subverte o uso da música, trazendo-a para o primeiro plano em determinados momentos, criando uma relação com o espectador a partir do compartilhamento de um determinado universo estético.
O deleite estético-visual proposto por Tarantino através de planos inusitados, direção de câmera e fotografia impecáveis se estende às músicas escolhidas para fazer parte da trilha sonora que, embora seja calcada na coletânea de canções, não parece preocupada apenas em obedecer a uma lógica de “emprego da música como estratégia de mercado”, como é o caso de Titanic. Até porque um disco em que a única música muito conhecida é “Don’t Let Me Be Misundertstood” não parece ter um apelo comercial digno de trilhas “blockbuster”.
Em uma busca que parece incessante por universos “underground”, presentes tanto nas referências a HQs, westerns muito antigos ou filmes B evidentes em Kill Bill 1, quanto nas trilhas sonoras cheias de grupos obscuros, Tarantino acaba revelando uma música pop que se relaciona estreitamente com o universo estético que está sendo retratado, a exemplo de Jackie Brown e Pulp Fiction, com trilhas recheadas de pérolas da black music, ou mesmo na trilha de Kill Bill 1, com nove músicas de grupos japoneses compondo uma história que se passa em grande parte no Japão.
Curiosamente, dois dos compositores mais solicitados do cinema mundial também fazem parte da trilha de Kill Bill 1, Bernard Herrmann e Enio Morricone, de quem a música utilizada em no filme de Tarantino é “Death Rides a Horse”, título em inglês do western spaghetti "Da uomo a uomo", de 1969, dirigido por Giulio Petroni e protagonizado por Lee Van Cleef, que não por acaso tem como protagonista um garoto chamado Bill, que vê a família ser assassinada por quatro ladrões e quinze anos depois sai atrás dos assassinos com um desejo infindável de vingança. A trilha original é assinada por Morricone. E a fortuita semelhança não é em vão, obviamente, já que os italian westerns e os filmes clássicos japoneses são a maior referência de Tarantino em Kill Bill, e neste exemplo ele cita “nominalmente”.

Twisted Nerve, música de Bernard Herrman que consta da trilha de Kill Bill, é título também de um filme de 1968 dirigido por Roy Boulting, que conta a história de Martin, um jovem rejeitado pelo padrasto, que tem um irmão com Síndrome de Down internado em uma instituição de tratamento, e é tratado como criança pela mãe. Martin desenvolve um distúrbio de personalidade e passa a querer matar, embalado pela trilha original composta por Herrmann.

Outra música presente na trilha de Kill Bill 1 é Truck Turner, composta e interpretada por Isaac Hayes, ator e compositor que protagonizou blaxploitation movies, a exemplo do próprio Truck Turner, de 1974, e Shaft, de 1971. Hayes também é a voz do Chef Jerome McElroy, do desenho animado engraçadinho e politicamente incorreto South Park. Truck Turner trilha a seqüência em que a noiva tenta retomar os movimentos dos pés para poder dirigir a camionete do enfermeiro que ela matou pouco antes de fugir do hospital onde ficou internada por quatro anos. Mais uma vez, é possível observar Tarantino fazendo referência ao universo estético do qual ele pinça elementos e bate no liquidificador para fazer os seus próprios filmes – neste caso, a referência é aos blaxploitation movies, cuja citação é bem mais óbvia em Jackie Brown.

Outras músicas presentes na trilha de Kill Bill 1 também foram extraídas – intencionalmente – de filmes da década de 70 que são referência para o diretor, como White Lightning, de 1973, protagonizado por Burt Reynolds, e cuja música homônima que faz parte da trilha foi composta por Charles Bernstein. Os outros exemplos são “Il Grande Duello”, música quer também é título do western de 1972 que tem a trilha assinada pelo argentino Luiz Bacalov; “Green Hornet”, tocada por Al Hirt e que faz parte da trilha da série de TV homônima de 1966, com Bruce Lee no papel de um lutador de Kong Fu; “Battle Without Honor or Humanity”, que integra a trilha do filme japonês Shin jingi naki tatakai, de 2000; e “Ironside”, composta por Quincy Jones, que embala a trilha da também homônima série de TV de 1967.
Como se pode notar, tudo é citação em Kill Bill 1, e Tarantino sai deixando pistas que são tão mais decifradas quanto maior for o repertório pop/trash do espectador. “Don’t Let Me Be Misunderstood” trilhando a seqüência final de luta entre a noiva e a personagem de Lucy Liu e “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” na cena em que a noiva é assassinada pelo ex marido são demonstrações do bom humor abusado do qual Tarantino se permite fazer uso na seleção das músicas que vão trilhar os seus filmes.
Segue abaixo a lista de todas as músicas presentes na trilha sonora de Kill Bill 1:
- "Truck Turner", composta e executada por Isaac Hayes
- "Battle Without Honor or Humanity", também conhecida como "Theme for Shin Jingi Naki Tatakai", composta e executada por Tomoyasu Hotei
- "The Lonely Shepherd", composta por James Lats e executada por Zamfir
- "Bang Bang (My Baby Shot Me Down)", composta por Sonny Bono e executada por Nancy Sinatra
- "Twisted Nerve", composta e executada por Bernard Herrmann
- "Green Hornet", composta por Billy May e executada por Al Hirt
- "Don't Let Me Be Misunderstood / Esmeralda Suite", composta por Benjamin, Caldwell, Marcus, Donnez, Skorsky e De Scarano e executada por Santa Esmeralda
- "Woo Hoo", composta por George Donald McGraw e executada por The 5.6.7.8's
- "Nobody But Me", composta por Rudolph Isley, Ronald Isley e O'Kelly Isley e executada por The Human Beinz
- "Urami-Bushi", composta por Shunya Ito and Shun-suke Kikuchi e executada por Meiko Kaji
- "I Lunghi Gioni Della Vendetta / The Long Day of Vengeance", composta e executada por Armando Trovajoli
- "I'm Blue", composta por Ike Turner e executada por The 5.6.7.8's
- "Police Check Point", composta e executada por Harry Betts
- "Wound That Heals", composta por Takeshi Kobayashi e executada por Lily Chou-Chou
- "Death Rides a Horse", composta e executada por Ennio Morricone
- "Music Box Dancer", composta por Frank Mills
- "Armundo", composta e executada por David Allen Young
- "Ironside", composta e executada por Quincy D. Jones
- "That Certain Female", composta e executada por Charlie Feathers
- "Seven Notes in Black", composta por Franco Bixio, Fabio Frizzi & Vince Tempera e executada pela Vince Tempera & Orchestra
- "Il Grande Duello / The Grand Duel, A (Mix II)", composta e executada por Luis Bacalov
- "Il Grande Duello / The Grand Duel, M10", composta e executada por Luis Bacalov
- "Il Grande Duello / The Grand Duel - (Parte Prima)", composta e executada por Luis Bacalov
- "Run Fay Run", composta e executada por Isaac Hayes
- "I Walk Like Jayne Mansfield", composta de executada por The 5.6.7.8'
- "I Giorni Dell'ira", composta por Riziere Ortolani e executada por Riz Ortolani
- "Super 16", composta por Klaus Dinger, Michael Rother e executada por NEU!
- "Champions of Death", composta por Shunsuke Kikuchi
- "White Lightning", composta e executada por Charles Bernstein
- "Flower of Carnage (Shura No Hana)", composta por Kazuo Koike, Masaaki Hirao, Koji Ryuzaki e executada por Meiko Kaji
- "Yagyu Conspiracy", composta e executada por Toshiaki Tsushima
- "Land of 1000 Dances", composta por Chris Kenner e executada por Wilson Pickett
[1] Algo como Bang Bang, ele atirou em mim/Bang Bang, eu cai no chão/Bang Bang, aquele barulho terrível/Bang Bang, meu amor atirou em mim. (Tradução nossa)

Pertencente a uma leva de realizadores “compõe” – com o perdão do trocadilho - as trilhas sonoras dos seus filme com coletâneas de canções, Quentin Tarantino transformou a escolha prodigiosa que faz dessas músicas em uma das suas principais marcas, tanto pelo uso bem humorado e inusitado que faz delas quanto pela contribuição que acaba trazendo a artistas que viviam no ostracismo até serem “redescobertos” pelo diretor. Esse uso da música não é exclusivo de Tarantino. É só prestar atenção nas músicas tão ou mais obscuras para o grande público presentes nos filmes de Almodóvar.
Algumas músicas presentes em cenas memoráveis dos filmes de Tarantino permanecem na memória de uma fatia do público que compartilha do gosto pela cultura pop e pelo deleite estético proposto pelo diretor, que é estendido às trilhas dos seus filmes. Certamente um número muito maior de pessoas lembra de My Heart Will Go On, de Celine Dion, embalando o romance das personagens de Leonardo di Caprio e Kate Winslet em Titanic, do que Girl, You’ll Be a Woman Soon trilhando a cena da overdose da personagem Mia Wallace, de Uma Thurman, em Pulp Fiction. Mas provavelmente essa música seria pouco ou nada ouvida em outro contexto, seja na versão original de Neil Diamond, ou no cover do Urge Overkill que está na trilha de Pulp Fiction.
Sobre a trilha de Kill Bill 1, composta por 32 músicas das quais apenas 17 constam do disco vendido no Brasil, vemos que o Tarantino continua apelando para uma trilha sonora meticulosamente escolhida, ao que parece, para possuir sentido por si só em algumas cenas, promovendo inclusive um distanciamento do espectador em relação ao filme por alguns instantes, e a conseqüente aproximação com o seu próprio universo estético – é a transição do mundo ficcional para o mundo particular observada por Umberto Eco.
Tal recurso, do qual diretores como Tarantino fazem uso propositadamente, são inclusive “desaconselhados”, por assim dizer, por autores que estudam as funções da música no cinema clássico, e que propõem a inaudibilidade como pré requisito para um bom funcionamento da relação entre imagem e música no cinema clássico citado. Mas como o cinema de Tarantino só remete aos clássicos em algumas citações (acentuadas em Kill Bill 1), da piada em que ele parece querer transformar Kill Bill (incluso ai o segundo filme também) a música é parte decisiva. Em seus 110 minutos de duração em que estão inseridas as 32 canções citadas, não é utilizada nenhuma música que sugira grande tensão ou grandes progressões, nem mesmo nas cenas de brigas, ou em qualquer outra que sugira algum suspense, como a gang de O’Ren Ishi (personagem de Lucy Liu) entrando no salão onde acontece a seqüência mais longa do filme, com cenas de luta e uma violência despudorada e rasgada.

A seqüência em que a protagonista do filme vivida por Uma Thurman (A noiva) já está no referido salão prestes a enfrentar a batalha mais difícil desde que saiu do estado de coma e se imbuiu da obrigação de matar os inimigos que quase a mataram quatro anos antes é trilhada pelas músicas diegetizadas do grupo japonês 5, 6, 7, 8’s (existe “de verdade”), que toca um rock despretencioso com um pé na surf music e no rockabilly em uma festa que acontece no local.

Nada menos que 20 músicas e uma série de efeitos sonoros trilham a seqüência, cujo clímax é a luta entre A noiva e O’Ren Ishi que acontece numa área externa da casa das folhas azuis sob a neve e tem como “pano de fundo sonoro” Don’t Let Me Be Misunderstood, cuja versão do Santa Esmeralda que está na trilha de Kill Bill 1 é um hit disco/glitter/gay da década de 70. Uma das músicas mais clichê de que se tem notícia trilha uma cena das menos óbvias, onde duas mulheres dotadas de força física incomum manipulam espadas com maestria. Só para constar, a versão original da música foi hit também, só que na década de 60 e pelas mãos do The Animals.

Outro exemplo, neste caso de humor negro, é a cena inicial do filme, de extrema violência, que mostra um massacre numa pequena capela em Pasadena, em que A noiva, grávida, é espancada e leva um tiro na cabeça desferido pelo ex marido, Bill. Essa cena é trilhada pela música “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)”, cantada por Nancy Sinatra.

A música em diversas passagens de Kill Bill 1 é utilizada para “descrever” de certa forma o que está sendo visto, fazer uma referência literal, mesmo com esse tom de humor negro que se tem ao se trilhar uma cena de uma mulher que toma um tiro dado pelo próprio marido com a música de Nancy Sinatra cujo refrão diz: “Bang bang, he shot me down/Bang bang, I hit the ground/Bang bang, that awful sound/Bang bang, my baby shot me down[1].” É um típico caso em que são as letras, e não a música em si, que remete objetivamente à narrativa.
A trilha sonora de Kill Bill 1, bem como de outros filmes de Tarantino, não parece se propor a nenhum dos propósitos verificados na utilização “tradicional” da música pelo cinema. O que há de genial neste uso inusitado parece residir justamente em como Tarantino subverte o uso da música, trazendo-a para o primeiro plano em determinados momentos, criando uma relação com o espectador a partir do compartilhamento de um determinado universo estético.
O deleite estético-visual proposto por Tarantino através de planos inusitados, direção de câmera e fotografia impecáveis se estende às músicas escolhidas para fazer parte da trilha sonora que, embora seja calcada na coletânea de canções, não parece preocupada apenas em obedecer a uma lógica de “emprego da música como estratégia de mercado”, como é o caso de Titanic. Até porque um disco em que a única música muito conhecida é “Don’t Let Me Be Misundertstood” não parece ter um apelo comercial digno de trilhas “blockbuster”.
Em uma busca que parece incessante por universos “underground”, presentes tanto nas referências a HQs, westerns muito antigos ou filmes B evidentes em Kill Bill 1, quanto nas trilhas sonoras cheias de grupos obscuros, Tarantino acaba revelando uma música pop que se relaciona estreitamente com o universo estético que está sendo retratado, a exemplo de Jackie Brown e Pulp Fiction, com trilhas recheadas de pérolas da black music, ou mesmo na trilha de Kill Bill 1, com nove músicas de grupos japoneses compondo uma história que se passa em grande parte no Japão.
Curiosamente, dois dos compositores mais solicitados do cinema mundial também fazem parte da trilha de Kill Bill 1, Bernard Herrmann e Enio Morricone, de quem a música utilizada em no filme de Tarantino é “Death Rides a Horse”, título em inglês do western spaghetti "Da uomo a uomo", de 1969, dirigido por Giulio Petroni e protagonizado por Lee Van Cleef, que não por acaso tem como protagonista um garoto chamado Bill, que vê a família ser assassinada por quatro ladrões e quinze anos depois sai atrás dos assassinos com um desejo infindável de vingança. A trilha original é assinada por Morricone. E a fortuita semelhança não é em vão, obviamente, já que os italian westerns e os filmes clássicos japoneses são a maior referência de Tarantino em Kill Bill, e neste exemplo ele cita “nominalmente”.

Twisted Nerve, música de Bernard Herrman que consta da trilha de Kill Bill, é título também de um filme de 1968 dirigido por Roy Boulting, que conta a história de Martin, um jovem rejeitado pelo padrasto, que tem um irmão com Síndrome de Down internado em uma instituição de tratamento, e é tratado como criança pela mãe. Martin desenvolve um distúrbio de personalidade e passa a querer matar, embalado pela trilha original composta por Herrmann.

Outra música presente na trilha de Kill Bill 1 é Truck Turner, composta e interpretada por Isaac Hayes, ator e compositor que protagonizou blaxploitation movies, a exemplo do próprio Truck Turner, de 1974, e Shaft, de 1971. Hayes também é a voz do Chef Jerome McElroy, do desenho animado engraçadinho e politicamente incorreto South Park. Truck Turner trilha a seqüência em que a noiva tenta retomar os movimentos dos pés para poder dirigir a camionete do enfermeiro que ela matou pouco antes de fugir do hospital onde ficou internada por quatro anos. Mais uma vez, é possível observar Tarantino fazendo referência ao universo estético do qual ele pinça elementos e bate no liquidificador para fazer os seus próprios filmes – neste caso, a referência é aos blaxploitation movies, cuja citação é bem mais óbvia em Jackie Brown.

Outras músicas presentes na trilha de Kill Bill 1 também foram extraídas – intencionalmente – de filmes da década de 70 que são referência para o diretor, como White Lightning, de 1973, protagonizado por Burt Reynolds, e cuja música homônima que faz parte da trilha foi composta por Charles Bernstein. Os outros exemplos são “Il Grande Duello”, música quer também é título do western de 1972 que tem a trilha assinada pelo argentino Luiz Bacalov; “Green Hornet”, tocada por Al Hirt e que faz parte da trilha da série de TV homônima de 1966, com Bruce Lee no papel de um lutador de Kong Fu; “Battle Without Honor or Humanity”, que integra a trilha do filme japonês Shin jingi naki tatakai, de 2000; e “Ironside”, composta por Quincy Jones, que embala a trilha da também homônima série de TV de 1967.
Como se pode notar, tudo é citação em Kill Bill 1, e Tarantino sai deixando pistas que são tão mais decifradas quanto maior for o repertório pop/trash do espectador. “Don’t Let Me Be Misunderstood” trilhando a seqüência final de luta entre a noiva e a personagem de Lucy Liu e “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” na cena em que a noiva é assassinada pelo ex marido são demonstrações do bom humor abusado do qual Tarantino se permite fazer uso na seleção das músicas que vão trilhar os seus filmes.
Segue abaixo a lista de todas as músicas presentes na trilha sonora de Kill Bill 1:
- "Truck Turner", composta e executada por Isaac Hayes
- "Battle Without Honor or Humanity", também conhecida como "Theme for Shin Jingi Naki Tatakai", composta e executada por Tomoyasu Hotei
- "The Lonely Shepherd", composta por James Lats e executada por Zamfir
- "Bang Bang (My Baby Shot Me Down)", composta por Sonny Bono e executada por Nancy Sinatra
- "Twisted Nerve", composta e executada por Bernard Herrmann
- "Green Hornet", composta por Billy May e executada por Al Hirt
- "Don't Let Me Be Misunderstood / Esmeralda Suite", composta por Benjamin, Caldwell, Marcus, Donnez, Skorsky e De Scarano e executada por Santa Esmeralda
- "Woo Hoo", composta por George Donald McGraw e executada por The 5.6.7.8's
- "Nobody But Me", composta por Rudolph Isley, Ronald Isley e O'Kelly Isley e executada por The Human Beinz
- "Urami-Bushi", composta por Shunya Ito and Shun-suke Kikuchi e executada por Meiko Kaji
- "I Lunghi Gioni Della Vendetta / The Long Day of Vengeance", composta e executada por Armando Trovajoli
- "I'm Blue", composta por Ike Turner e executada por The 5.6.7.8's
- "Police Check Point", composta e executada por Harry Betts
- "Wound That Heals", composta por Takeshi Kobayashi e executada por Lily Chou-Chou
- "Death Rides a Horse", composta e executada por Ennio Morricone
- "Music Box Dancer", composta por Frank Mills
- "Armundo", composta e executada por David Allen Young
- "Ironside", composta e executada por Quincy D. Jones
- "That Certain Female", composta e executada por Charlie Feathers
- "Seven Notes in Black", composta por Franco Bixio, Fabio Frizzi & Vince Tempera e executada pela Vince Tempera & Orchestra
- "Il Grande Duello / The Grand Duel, A (Mix II)", composta e executada por Luis Bacalov
- "Il Grande Duello / The Grand Duel, M10", composta e executada por Luis Bacalov
- "Il Grande Duello / The Grand Duel - (Parte Prima)", composta e executada por Luis Bacalov
- "Run Fay Run", composta e executada por Isaac Hayes
- "I Walk Like Jayne Mansfield", composta de executada por The 5.6.7.8'
- "I Giorni Dell'ira", composta por Riziere Ortolani e executada por Riz Ortolani
- "Super 16", composta por Klaus Dinger, Michael Rother e executada por NEU!
- "Champions of Death", composta por Shunsuke Kikuchi
- "White Lightning", composta e executada por Charles Bernstein
- "Flower of Carnage (Shura No Hana)", composta por Kazuo Koike, Masaaki Hirao, Koji Ryuzaki e executada por Meiko Kaji
- "Yagyu Conspiracy", composta e executada por Toshiaki Tsushima
- "Land of 1000 Dances", composta por Chris Kenner e executada por Wilson Pickett
[1] Algo como Bang Bang, ele atirou em mim/Bang Bang, eu cai no chão/Bang Bang, aquele barulho terrível/Bang Bang, meu amor atirou em mim. (Tradução nossa)

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